Bolsonaro denunciado: O que está em jogo é o futuro da democracia brasileira

O professor de Direito Constitucional Emílio Peluso, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), afirmou, em entrevista ao The Intercept, que a Suprema Corte brasileira tem agora uma missão similar à da Alemanha pós-nazista ao julgar Jair Bolsonaro pela tentativa de golpe de Estado.

À primeira vista, a comparação pode parecer forte, mas é esclarecedora. Seu argumento é o de que o julgamento de Bolsonaro não é apenas sobre um ex-presidente, mas sobre o próprio futuro da democracia no Brasil. Ou seja, o que está em jogo, segundo Peluso, não é só a punição de um indivíduo, ou de um grupo de pessoas, mas a definição de até onde vai a tolerância institucional diante de um movimento político que tentou a ruptura democrática.Secretária da Covid contraria Bolsonaro e diz que vacina para criança é  segura - 26/12/2021 - Equilíbrio e Saúde - Folha

Os contextos são diferentes e quase um século separa os casos da Alemanha e do Brasil. Mas, no pós-guerra, a Alemanha precisou lidar com a ameaça de grupos neonazistas se reorganizando no interior da democracia e tomou decisões que estabeleceram barreiras institucionais contra a tentativa de reconstrução daquele regime. De forma similar, a justiça brasileira tem a oportunidade de estabelecer princípios que minimizem os riscos de que condutas golpistas sejam normalizadas e ampliem a margem de tolerância para ações que testam os limites do que é considerável aceitável em um regime democrático.

Além dos desafios jurídicos, o Brasil enfrenta ainda o desafio social e político de como lidar com um amplo espectro de apoiadores e simpatizantes de Bolsonaro, conforme tenho analisado nas pesquisas que realizo sobre esses eleitores. Nesse âmbito estão aqueles que tendem a manter seu apoio ao ex-presidente, mesmo após a divulgação dos documentos do indiciamento pela Polícia Federal e da denúncia da Procuradoria Geral da República que dão conta de que a trama golpista chegou a prever o assassinato do presidente e vice-presidente eleitos, de um juiz da Suprema Corte e a prisão do presidente do Senado.

Diferentemente do contexto alemão, em que o pós-guerra significou um marco de ruptura, o bolsonarismo segue ativo e mobilizado, sustentado por uma base popular que não vai simplesmente desaparecer com as decisões judiciais. Ao contrário, há o risco ainda de que o seu julgamento seja instrumentalizado para fortalecer o argumento de perseguição judicial já há muito repetido por Bolsonaro. Isso significa que a resposta ao golpismo não pode se limitar à esfera jurídica. Ela precisa ser compreendida e legitimada socialmente para evitar que a narrativa de perseguição política ganhe ainda mais tração entre sua base de apoio.

Assim, o primeiro desafio não está apenas em garantir que a responsabilização ocorra dentro das regras do Estado de Direito, mas no modo como essa responsabilização será percebida por diferentes segmentos da sociedade. Se por um lado a Justiça tem o papel de assegurar que tentativas de ruptura democrática tenham consequências, por outro, a forma como essa resposta será comunicada determinará se ela contribuirá para o fortalecimento do sistema político ou se alimentará novas formas de radicalização e ressentimento.

A experiência internacional nos mostra que respostas institucionais não podem ser apenas punitivas, mas também acompanhadas da construção de um consenso sobre os limites democráticos. A Alemanha, por exemplo, não apenas baniu partidos neonazistas, mas investiu em uma cultura política que reforçasse a rejeição ao autoritarismo. No Brasil, o desafio se traduz em encontrar formas de enfrentar o legado do bolsonarismo sem fortalecer sua retórica de vitimização.

População precisa compreender a natureza do crime

Um dos desafios mais específicos desse processo é a compreensão pública sobre os tipos de crimes que estão em questão. O crime de tentativa de golpe de Estado se diferencia, em muitos aspectos, dos crimes comuns com os quais a população está mais familiarizada, em que a materialidade costuma ser mais evidente, como em casos de roubo ou homicídio. No caso de um golpe de Estado, a própria tentativa já configura crime, ainda que não tenha se concretizado na derrubada do governo. Essa lógica, no entanto, pode parecer abstrata para uma parte da população, que tende a associar crime a consequências tangíveis e imediatas.

Esse aspecto torna a comunicação do julgamento ainda mais delicada. Uma parte do público pode interpretar a responsabilização como exagerada ou movida por interesses políticos. Sem uma explicação clara sobre a natureza desse crime, há o risco de que a decisão do STF seja percebida como uma punição excessiva para um ato que não chegou a acontecer, como tem sido defendido pela família Bolsonaro.

Se o entendimento sobre crimes comuns já é permeado por interpretações moralizantes no debate público, um crime contra o Estado democrático e não que teria se consumado plenamente exige um esforço maior para que sua gravidade seja amplamente comunicada e reconhecida.

Outro desafio é a mobilização internacional, especialmente nos Estados Unidos, algo que ganhou força com o engajamento de figuras influentes como Elon Musk. Desde a suspensão temporária do X no Brasil, Musk tem utilizado sua plataforma para amplificar narrativas bolsonaristas, incluindo a alegação de que o Brasil não tem liberdade de expressão. Assim, Elon Musk não só amplificou as narrativas bolsonaristas, mas deu a elas uma plataforma global e um verniz de credibilidade. Essa retórica, embora baseada em uma distorção dos fatos, serve a um propósito estratégico: apresentar Bolsonaro e seus aliados como vítimas de um regime autoritário e, assim, buscar apoio externo para a deslegitimação das instituições brasileiras.

Esse tipo de intervenção é parte de um fenômeno mais amplo de redes transnacionais da extrema direita operando no ambiente digital. O desafio da mobilização, portanto, não se restringe à resposta interna, mas à capacidade de o Brasil comunicar esse processo de forma clara também no cenário internacional. Se a ofensiva digital não for contraposta com uma estratégia institucional também no campo da comunicação, o risco é que a mobilização bolsonarista se fortaleça em redes fora do país que podem pressionar contra as decisões da justiça brasileira.

Isabela Kalil não presta consultoria, trabalha, possui ações ou recebe financiamento de qualquer empresa ou organização que poderia se beneficiar com a publicação deste artigo e não revelou nenhum vínculo relevante além de seu cargo acadêmico.

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